quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Aventura


Esse texto me aconteceu basicamente a partir de uma pergunta: quem seriam os donos da rua?

 Dono:
substantivo masculino
1.       1.
proprietário, possuidor.
"d. de um terreno, de uma loja"
2.       2.
aquele que tem completo poder ou controle; senhor.
"ele tornou-se d. da situação"

Dono. A gente pode decidir entender aqui de uma forma rasa que dono, dono se qualifica por uma pessoa que passou mais tempo habitando aquele lugar, quando há lugar, quando não há, poderíamos dizer que seria alguém que passou maior parte do tempo de encontro com essa coisa, ou mesmo e simplesmente, alguém que possuiu o poder aquisitivo para garantir a compra dessa coisa. Pensando na rua, pensando no conceito de itinerância, me veio essa coisa da rua, do meio urbano enquanto um lugar em si, um lugar casa, um lugar grande, um lugar que serve de passeio pra muitos, mas que serve de parada pra alguns. Quem seriam esses "alguns"? O que poderia unificar todos de alguma forma enquanto proprietários do que chamamos de rua? Penso que esses sujeitos seriam vendedores ambulantes legais, camelôs, flanelinhas, moradores de rua, são pessoas que de alguma forma se colocam nesse lugar de circulação e estacionam por lá, eles habitam lugares específicos e poderíamos dizer a grosso modo que eles se caracterizam como obstáculos no modo de vida e funcionamento urbano. O flanelinha se acredita dono de vagas de carro, o ambulante se acredita dono do ponto, os moradores de rua, cada um no seu lugar, escolhem um pedaço de rua pra chamar de seu.
Nesse caso eu estou descuidando do conceito de utopia, e pensando mais no conceito de itinerância (já citado como ponto de partida no projeto) e aventura (que inauguramos como um lugar de pesquisa).

"Diante desse cenário, pergunto-me: como e para onde caminhar? A partir dessa
pergunta, este projeto prevê a criação de um espetáculo itinerante e site-specific no espaço
urbano da cidade do Rio de Janeiro, tendo como norte dois conceitos-chave – itinerância
e utopia – e apostando nas potencialidades éticas e estéticas das noções de paradoxo e de
precariedade.
Itinerância é qualidade daquilo que se move para todos os lados e lugares e que,
por isso mesmo, se (re)atualiza constantemente. Pressupõe deslocamento, viagem,
trajetória, caminho, percurso, rota, roteiro. Diferentemente da errância, a itinerância
pressupõe um ponto de partida e um ponto de chegada – e por isso mesmo é também um
exercício de autonomia e de escolha"

Me aproveitando dessa definição de itinerância, fiquei pensando nesses "donos da rua", fiquei pensando no que não se move nesse cenário. Não move até que chegue um tipo de ordem que expulsa o que ainda não foi legalizado. Me interessa mais aqui pensar os espaços não legalizados, mais enquanto algo que não tem valor determinado e como algo que não passa pela padronização de um bem. É simplesmente um espaço que foi possuído e decidido como seu. E é nesse espaço, ou próximo dele, que estamos nós, transeuntes, que passamos entre um afazer e outro. A gente passa, depois volta pra casa, pra nossa casa, pro nosso lugar, tira os sapatos ao entrar, toma um banho quente (ou frio) e se vê livre da sujeira e do frio (ou calor) da rua.

Casa
substantivo feminino
1.       1.
edifício de formatos e tamanhos variados, ger. de um ou dois andares, quase sempre destinado à habitação.
2.       2.
família; lar.

Casa. A casa enquanto conceito pode ser pensada num lugar completamente sufocado de segurança, nesse sentido, não há espaço pra nenhum tipo de acaso, ou errância. A casa é onde tudo funciona a sua maneira, isso gera uma sensação de conforto e pertencimento. A casa necessariamente trabalha numa relação de contraposição, ou compensação em relação ao espaço urbano.

A partir também dessa definição de itinerância, podemos pensar que nosso ponto de partida e chegada é variável, e a variante se dá exatamente a partir da presença desses "corpos-rua". A partir também dessa fala eu me pergunto até que ponto essa autonomia e escolha são reais. Existem dois pontos: A que leva a B, mas esse caminho pode ser alterado diariamente a partir dessas posses ambulantes, nesse caso então, uma possibilidade notória de "aventura"deve, ou pode, passar por esses corpos. Nesse caso também, o mínimo desvio de uma reta já conhecida em função de uma nova habitação já poderia ser uma potência de encontro vertiginoso. Agora, se a casa, enquanto casa traz a sensação de conforto e segurança,  será que nesses lugares, nessas "habitações-rua" a sensação é de que? Como é ter ou ser casa no espaço urbano? O que resta do conceito casa com a presença da imprevisibilidade? Como que a gente, não habitantes, não donos, podemos ser o lugar, antes de habitar, o que consiste em ser esse lugar? E habitar? Que características permeiam essa habitação? Me parece que essas pessoas, esses habitantes da rua, são a nossa grande fonte de pesquisa e observação. Porque são eles os responsáveis pela mudança na rota, nesse caso, são eles que vindo na nossa direção, ou em outra direção, nos fazem mudar a nossa direção. Talvez eles sejam a grande onda, e talvez a nossa questão não seja furar, mas entender de dentro o que seria esse fluxo, e quem sabe, juntos, corporeificar essa grande onda.

Coma


A gente achou, eu achei que ele ia levantar de repente e dizer que era tudo uma brincadeira. Parecia que ele ia começar a dançar. Eu achei que ele iria tirar aqueles tubos na marra, e reclamar de frio no pé. Do jeito que tava a expressão, parecia que a qualquer momento ele ia dar uma gargalhada dessas sonoras. Eu achei que ele ia abrir o olho, como foi da última vez, abrir o olho, sentar e pedir um cigarro. Eu cheguei a trocar aquele cano da boca de lado porque pensei que poderia machucar, e eu sei o quanto ele sofre de alergia. Fiquei imaginando que diria alguma coisa muito rabujenta e começaria a cantar aquela música que ele cantava toda vez que ainda queria acreditar. Parecia mesmo. Eu achei que. Foi só um silêncio que tinha como fundo um burburinho das enfermeiras e aquela máquina que ainda insistia em acusar os batimentos cardíacos. A máquina trocou o som de repente, passou a apitar continuamente, de forma aguda. E a gente ficou ali olhando. Nada aconteceu nesse meio tempo, a máquina seguiu apitando, a gente ficou ali parado e ele, ele só morreu mesmo.


É engraçado porque eu acho que se ele pudesse escolher, ele não teria escolhido estar assim, em coma. Ele foi induzido a algo. 
Mas será que existia alguma escolha? 
Quem fala por você quando você já não pode falar? 
Quem tem a coragem de falar por você quando nem você conseguiu no momento em que ainda poderia?

Eu respondo: ninguém.

COISAS QUE NÃO ACONTECEM (Um curta ou algo curto)


O QUE VEM ANTES (OU PRÓLOGO)

Câmera mostra  uma xícara grande de café, ela pega a xícara, pega o jornal em cima da mesa. Câmera não revela o rosto. Ela abre na parte do horóscopo, que diz: Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida.
Entra o nome do filme.

CENA 1
Começo. Essa cena tem a imagem desconectada do áudio. O áudio é uma conversa no salão, a imagem é ela andando na rua (sem mostrar seu rosto), a câmera só mostra o que ela vê, ela vê várias cenas banais de pessoas sozinhas, tipo um cara sozinho no bar, alguém lendo, alguém ouvindo música, ela não pára de andar, ela não é vista nem pela câmera, nem pelas pessoas.

Diálogo:
- Está uma graça
- Eu sei, mas corta. Quero na altura do queixo.
- Você não quer um pouco mais curto? E se eu cortasse aqui nas orelhas?
- Você acha que ficaria melhor?
- Mas se você cortar bastante você pode doar o cabelo pro lugar que faz peruca pra crianças com câncer.
- Você conhece esse lugar?
- Não.
- Ham. Então eu acho que vou cortar no queixo mesmo.
- Você pode deixar crescer mais dois centímetros? Depois você volta aqui, eu corto no queixo e você ainda pode doar o cabelo. Fica melhor pra todo mundo.
- Todo mundo? Olha, eu realmente preciso fazer isso hoje. Hoje é o primeiro dia do resto da minha vida.
- Ah, eu tive um dia desses semana passada.
- É mesmo? Como é que foi?
- Eu acordei e pensei. Esse é o primeiro dia do resto da minha vida.
- E aí? O que aconteceu?
- Dirigi até o trabalho.

CENA 2
Ela está sentada no Bob’s tomando milk shake, fazendo barulho e olhando ao redor, câmera ora fica nela, ora mostra as pessoas. Ela avista um cartaz de concurso de canto, vai até lá por curiosidade, câmera foca as informações do cartaz: Concurso para cantor de chuveiro. Venha soltar sua voz! Esse pode ser o primeiro dia do resto da sua vida! Câmera foca nela chocada com a coincidência, ela olha ao redor, arranca o cartaz.

CENA 3
Ela está em casa sentada no sofá com o cartaz no colo. Liga pra uma amiga.
- Eu to pensando em me inscrever num concurso de canto.
- Mas pra que?
- Pra cantar, eu acho.
- Mas você canta?
- Acho que ainda não.
- Mas de onde tirou essa ideia?
- Ah, eu vi um cartaz quando tava no bobs.
- Bobs? Você não tava de dieta.
- Tava. Mas hoje é diferente.
- Diferente como?
- Hoje pode tudo.
- Olha eu vou ter que desligar, estão me chamando aqui. Você não vai trabalhar?
- Não, eu vou me inscrever no concurso....
(A amiga desliga. Barulho de telefone ocupado)

CENA 4
Câmera filma o público, ela começa a cantar. Tem uma câmera atrás dela que vai subindo aos poucos. Até mostrar o cabelo bem curto com o público de fundo. Camera fica parada até ela terminar de cantar e o público aplaudir. Ela termina de cantar e sai pela frente num corredor, câmera continua parada, ela fecha a porta.

CENA 5
Música The Robot (Alessi´s Ark). Câmera mostrando as pessoas na rua da mesma forma que do início.
ps: Nesse momento eu gostaria de passar a sensação de que talvez nada disso tenha acontecido. Não sei como...
A cena continua enquanto os enquanto os créditos aparecem.

FIM