sexta-feira, 26 de março de 2021

Grito pandêmico

não aguento mais olhar pra esse varal do lado de fora eu não aguento mais acordar e ter esperança de que as coisas voltaram ao normal eu não aguento não saber o que fazer com a máscara que eu usei somente pra atender o cara da entrega não aguento esse cheiro de 3000 mortes por dia que vem junto com o cheiro de café não aguento ver gente emoldurada numa tela não aguento lidar com a morte do meu padrasto não aguento mais sentar no vaso e perceber que acabou o papel tem meses que eu não aguento não aguento ligar pra mãe dele não aguento não aguento essa sensação de que ele vai vir me visitar a qualquer momento não aguento aquelas mensagens de igreja que ele mandava todo dia não aguento esse presidente não aguento puxar mais ar não aguento respirar com máscara não aguento mensagem de grupo não aguento esse medo de que algo vai acontecer não aguento essa dificuldade de sentar e escrever não aguento esse latido agudo desse cachorro aqui de cima não aguento esses vizinhos fofos aqui do lado não aguento gente que grita não aguento meu humor diante disso não aguento disfarçar antipatia ou repulsa não aguento mais guardar ressentimento não aguento aquela amiga que manda áudio de 8 minutos cheia de razão não aguento com certezas que transbordam não aguento mais beber tanto vinho não aguento as bases estruturais desse país não aguento esses eleitores idiotas não aguento a possibilidade de ignorar o que se diz não aguento banalizar a palavra não aguento mais sentir vergonha de ser brasileira não aguento gente se lamentando em grupo de whatsapp não aguento mais não conseguir dizer exatamente o que eu gostaria na hora certa não aguento mais inventar rotina dentro não aguento mais de saudade do árabe do largo do machado não aguento mais perder amigos conforme a idade avança não aguento mais me olhar no espelho e ver o tempo passando não aguento mais esses poucos cabelos brancos bem do lado esquerdo não aguento mais acompanhar série não aguento mais os excluídos agredindo os agressores não aguento mais gente reclamando do tempo que vive não aguento mais ressentimento disfarçado de rebeldia não aguento mais ver jornal não aguento mais saber de alguém que morreu não aguento mais ouvir a voz do presidente não aguento mais não aguento a arrogância da psicanalise lacaniana não aguento mais bloquear número de telemarketing não aguento mais esse ventilador barulhento não aguento mais ouvir falar de privilégio não aguento mais domar dia pós dia intensamente a agressora que mora em mim.

sem querer

definir não fazer 

é quase fazer sem querer

acho delicado o tema, mas vou tentar antecipar essa coisa do não fazer

não pular de assunto pra assunto sem compromisso com o fim ou o meio das coisas

dar tempo pra coisa se manifestar sem querer apressar um dado, um acerto ou desacerto

esgarçar alguma coisa que possa chegar num tipo de limite que não será dado por mim, porque eu não saberia dá-lo

não desejo desejar o fim pra que ele se apresente por ele mesmo

não falar muita coisa porque me parece que já estamos todos surdos demais, falantes demais ou cansados demais dessa coisa que não finda, desse looping que ensaia uma comunicação

por algum motivo eu também não quero dizer muita coisa, eu gostaria de tentar dizer alguma coisa que ainda não tenha sido dita

não dizer mais de tudo que já está sendo dito


uma pessoa, em vida, tem no máximo dois grandes assuntos, com sorte dois, um cansaço que dá de toda essa coisa que não pára de falar na cabeça o tempo todo


desejo antes

desejo de não perder sem saber do retorno

- ai, e ao mesmo tempo vontade de que tudo isso se foda, eu não escrevo pra ninguém

eu quero essa coisa que não termina porque quase que não existe


não quero

não escrever o que existe

inventar um estar no mundo

inventar um antídoto com palavra

eu não acredito mais no longe 

eu posso dar o agora o bom do agora o estar agora o olhar agora eu não quero falar de futuro nem de passado eu quero falar do que acontece eu quero que acabe de sair do forno ou que talvez não saia nunca que fique lá eu não quero não desejo emitir nenhum tipo de juízo de valor eu não acho que seja sobre isso agora eu ainda não sei sobre o que é pra mim todo esse processo é meio apavorante porque eu realmente não sei se dou conta de toda essa coisa por dizer com alguém dizendo também isso sempre me pareceu pessoal demais íntimo demais eu não desejo que seja tão mais sobre mim quando entende demais cansa a cabeça não quero me arrepender por não ter dito algo quero que seja preciso urgência em se manifestar manifestação do agora no agora estar no agora pra dar conta de tudo que atravessa não se proteger não falar sobre o que há por trás o que aparece o que vem antes o que chega sem pedir licença o que plana na superfície o que simplesmente acontece não cavar fundo receber o que está na borda pedindo socorro eu quero conseguir escrever um pedido de socorro.