Esse texto me aconteceu basicamente a partir de uma
pergunta: quem seriam os donos da rua?
Dono:
substantivo masculino
1. 1.
proprietário, possuidor.
"d. de um terreno, de uma loja"
2. 2.
aquele que tem completo poder ou controle; senhor.
"ele tornou-se d. da situação"
Dono. A gente pode decidir entender aqui de uma
forma rasa que dono, dono se qualifica por uma pessoa que passou mais tempo
habitando aquele lugar, quando há lugar, quando não há, poderíamos dizer que
seria alguém que passou maior parte do tempo de encontro com essa coisa, ou
mesmo e simplesmente, alguém que possuiu o poder aquisitivo para garantir a
compra dessa coisa. Pensando na rua, pensando no conceito de itinerância, me
veio essa coisa da rua, do meio urbano enquanto um lugar em si, um lugar casa,
um lugar grande, um lugar que serve de passeio pra muitos, mas que serve de
parada pra alguns. Quem seriam esses "alguns"? O que poderia unificar
todos de alguma forma enquanto proprietários do que chamamos de rua? Penso que
esses sujeitos seriam vendedores ambulantes legais, camelôs, flanelinhas, moradores
de rua, são pessoas que de alguma forma se colocam nesse lugar de circulação e
estacionam por lá, eles habitam lugares específicos e poderíamos dizer a grosso
modo que eles se caracterizam como obstáculos no modo de vida e funcionamento
urbano. O flanelinha se acredita dono de vagas de carro, o ambulante se
acredita dono do ponto, os moradores de rua, cada um no seu lugar, escolhem um
pedaço de rua pra chamar de seu.
Nesse caso eu estou descuidando do conceito de
utopia, e pensando mais no conceito de itinerância (já citado como ponto de
partida no projeto) e aventura (que inauguramos como um lugar de pesquisa).
"Diante
desse cenário, pergunto-me: como e para onde caminhar? A partir dessa
pergunta,
este projeto prevê a criação de um espetáculo itinerante e site-specific no
espaço
urbano
da cidade do Rio de Janeiro, tendo como norte dois conceitos-chave –
itinerância
e
utopia – e apostando nas potencialidades éticas e estéticas das noções de
paradoxo e de
precariedade.
Itinerância
é qualidade daquilo que se move para todos os lados e lugares e que,
por
isso mesmo, se (re)atualiza constantemente. Pressupõe deslocamento, viagem,
trajetória,
caminho, percurso, rota, roteiro. Diferentemente da errância, a itinerância
pressupõe
um ponto de partida e um ponto de chegada – e por isso mesmo é também um
exercício
de autonomia e de escolha"
Me aproveitando dessa definição de
itinerância, fiquei pensando nesses "donos da rua", fiquei pensando
no que não se move nesse cenário. Não move até que chegue um tipo de ordem que
expulsa o que ainda não foi legalizado. Me interessa mais aqui pensar os
espaços não legalizados, mais enquanto algo que não tem valor determinado e
como algo que não passa pela padronização de um bem. É simplesmente um espaço
que foi possuído e decidido como seu. E é nesse espaço, ou próximo dele, que
estamos nós, transeuntes, que passamos entre um afazer e outro. A gente passa,
depois volta pra casa, pra nossa casa, pro nosso lugar, tira os sapatos ao
entrar, toma um banho quente (ou frio) e se vê livre da sujeira e do frio (ou
calor) da rua.
Casa
substantivo feminino
1. 1.
edifício de formatos e tamanhos variados, ger. de um ou dois andares,
quase sempre destinado à habitação.
2. 2.
família; lar.
Casa. A casa enquanto conceito pode ser pensada num
lugar completamente sufocado de segurança, nesse sentido, não há espaço pra
nenhum tipo de acaso, ou errância. A casa é onde tudo funciona a sua maneira,
isso gera uma sensação de conforto e pertencimento. A casa necessariamente
trabalha numa relação de contraposição, ou compensação em relação ao espaço
urbano.
A partir também dessa definição de itinerância,
podemos pensar que nosso ponto de partida e chegada é variável, e a variante se
dá exatamente a partir da presença desses "corpos-rua". A partir
também dessa fala eu me pergunto até que ponto essa autonomia e escolha são
reais. Existem dois pontos: A que leva a B, mas esse caminho pode ser alterado
diariamente a partir dessas posses ambulantes, nesse caso então, uma
possibilidade notória de "aventura"deve, ou pode, passar por esses
corpos. Nesse caso também, o mínimo desvio de uma reta já conhecida em função
de uma nova habitação já poderia ser uma potência de encontro vertiginoso.
Agora, se a casa, enquanto casa traz a sensação de conforto e segurança, será que nesses lugares, nessas "habitações-rua"
a sensação é de que? Como é ter ou ser casa no espaço urbano? O que resta do
conceito casa com a presença da imprevisibilidade? Como que a gente, não
habitantes, não donos, podemos ser o lugar, antes de habitar, o que consiste em
ser esse lugar? E habitar? Que características permeiam essa habitação? Me
parece que essas pessoas, esses habitantes da rua, são a nossa grande fonte de
pesquisa e observação. Porque são eles os responsáveis pela mudança na rota,
nesse caso, são eles que vindo na nossa direção, ou em outra direção, nos fazem
mudar a nossa direção. Talvez eles sejam a grande onda, e talvez a nossa
questão não seja furar, mas entender de dentro o que seria esse fluxo, e quem
sabe, juntos, corporeificar essa grande onda.