e ela chega em casa, ou melhor, ela já estava desde cedo,
hoje decidiu-se, quis ficar um tempo olhando pra parede, um tempo jogando
conversa fora, um tempo pensando no tipo de vento que ventava lá fora, ela
assistia sua única serie, por isso favorita, ela descobriu uma posição incrível
pra sua cama, bem ao lado dos livros, não se sente mais sozinha, tem haver com
essa tentativa de parar de projetar nos outros o que deveria estar lá dentro,
no caso, dentro dela, quando ela vive uma história, de amor, de ódio, qualquer
coisa, se afasta dos livros, ela quer dosar, ela quer conseguir se equilibrar numa
linha fina e muito frágil, ela quer chegar do outro lado e sabe que só vai ser
possível com muito equilíbrio: “estamos num tempo de energias difusas, quem não
estiver equilibrado vai se afundar”. não, eu não, definitivamente. “é muito
simples, cada um no seu quadrado e pronto”. entendi, se o pensamento fosse
esse, nem sexo existiria, ficaria sobrando de uma parte, faltando de outra,
nenhuma tentativa alcança.
e ela decidiu mesmo continuar a noite em casa, poderia
muitas coisas, poderia mesmo, mas ela quis escrever, ela quis pensar no que ela
precisa, ela precisou ir na farmácia comprar a pílula, porque já esqueceu
ontem, ela realmente é um fracasso com medidas de prevenção, ela é do tipo que
remedia, mas tem coisa que não tem remédio, daí ela tenta se adequar.
seu pai, longe, mas muito longe de ser um modelo de pai vem
até o seu quarto, se senta na sua frente, lhe dá o dinheiro dá análise, diz a
ela que as coisas estão melhorando, que ele pensa em lhe dar algum dinheiro pra
viajar, ela desabafa, fala que se pudesse pegava um avião e desaparecia, a sensação é de que seus braços se esticam até
não poder mais, cada um pra um lado, como num sonho que ela teve a um tempo,
mas no sonho quem esticava era sua mãe.
ele diz que quando namoravam não faziam sexo na frente dela,
do bebê de 6 meses, ela estranha, nunca falaram de sexo, ela nunca viu sequer
um beijo do casal, ele diz que ficavam juntos, a coisa esquentava, ela pedia
pra parar, ele dá detalhes, ele diz que nos finais de semana iam á motéis pra
resolver a vida deles, deixavam um tio cuidando, ele fala que é a criação dela,
pra ela, segundo ele, tudo isso é muito difícil de entender e aceitar, ele diz
que achava um absurdo, a criança estava dormindo, mas ela nunca cedeu. ele diz
também que não se pode dar muita importância a brigas, a nada na verdade,
daí ele dá o exemplo do irmão que foi demitido pra dizer que as coisas vão se
ajeitar, ele, o irmão já está bem empregado, o mercado ta inflado, ele diz, ela
pensa que as coisas não tem fluido bem desse jeito com ela. ele diz que eles vão existir
sempre, os problemas, mas ele diz que as coisas permanecem, o negócio é não
esquentar.
ele virou outra pessoa depois desse problema de saúde,
dessa crise
conjugal
e da análise
=
coquetel transformation
ele pulou a poça, essa imagem
não sai da cabeça dela, ele estava mal da coluna e de repente um dia, pulou uma
super poça, percebeu que estava curado, essa poça fez toda diferença na vida
dele. é preciso pular poças sem pensar em absolutamente nada.
ela pensa que isso explica muita coisa e vai ver um filme ou
criar o roteiro de um trabalho de direção que ela assumiu na faculdade, ela
está plena apesar de tudo, sabe que isso não deve durar, ela esta pensando em
intensificar a análise por algum tempo,
pensa que tudo isso de hoje poderia
ter sido diferente se não fosse a análise ontem.
ontem: seu analista atrasa, se explica e isso soa engraçado,
essa inversão de papéis, pega o metro no sentido contrário, permanece por cerca
de 5 minutos no ponto final, volta pro lugar de onde saiu, a mesma estação,
percebe o erro, esta ao telefone com sua mãe, que diz que se sente atropelada,
atravessa pro sentido certo, recebe uma ligação que não vê, tenta avisar que
está atrasada pra uma reunião por mensagem, mensagem não enviada, pega o livro
pra ler, percebe que esta molhado, chega no flamengo, compra um milho macio e branco na saída
do metro, sobe pro apartamento,
consegue encontrar numa pesquisa sua série favorita e única, assiste um
capítulo que já viu, vai pra casa, em casa assiste o capítulo 8, bebe água
e dorme consigo mesma.
- mas hoje, o que você fez hoje?
- assisti o capítulo 9 e o início do 10 da minha série
favorita e única.
ela lembra que não tem sentido fome há alguns dias, estranhamente,
ela não tem sentido fome, alguém disse que ela parece triste, assim, meio sem
luz.
ela pensa que deve ser isso mesmo, ela não sabe quando, mas ela acha que apagou um dia desses pra dormir e esqueceu de acender de volta.
e ela segue sem fome.
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